QUEM FOI NVEMBA NZINGA (DOM AFONSO I)
Quando Nzinga Nkuvu (D. João I) do Kongo faleceu em 1506, tendo subido
ao trono seu filho Nzinga Mbemba, Afonso I do Kongo; rei cristão. Os
partidários de Mpanzu-a-Kitima levantaram problemas políticos e religiosos.
Após uma luta sucessória e fratricida na qual não faltaram tentativas, da parte
de algumas facções nobres, em remover o cristianismo de que haviam sido
excluídos, ascendeu ao trono Mvemba Nzinga
(D.Afonso
I), o mais importante rei da história luso-congolesa, chefe político e espiritual
da catolização do reino do Congo. Isto porque, na verdade, seu pai, Nzinga
Nkuvu (D. João I), não obstante convertido, logo abandonaria o cristianismo,
pressionado por setores da nobreza que não aceitavam a nova religião. Para
eles, ela não se mostrou eficaz contra os infortúnios que então assolavam o
reino. Além disso, o rei e os nobres resistiam a aceitar a monogamia imposta
pelos padres, um dos temas mais polêmicos na aceitação da nova religião, uma
vez que a extensão da rede de solidariedades tecida pelos casamentos era peça fundamental
nas relações de poder tradicionais.
Mvemba
Nzinga conquistou
o trono depois de lutas com seu irmão
Mpanzu-a-Kitima e reinou por trinta e sete anos, de
1506 a 1543, sendo as bases do cristianismo no Congo estabelecidas em seu
reinado. De acordo com John Thornton, Mvemba Nzinga Era profundamente dedicado ao catolicismo,
impressionando os missionários com o seu saber e com a sua dedicação aos
estudos[1].
Seu filho Henrique chegou a ser consagrado bispo (1518-1531), o que não foi
visto com bons olhos pelo clero e pela coroa portuguesa, pois dessa forma
diminuía o controle exercido pelo Estado por meio do monopólio da religião. Mas
não foi apenas o cristianismo que floresceu sob o reinado de Mvemba Nzinga.
Antes
de tudo, Mvemba Nzinga promoveu
um autêntico “aportuguesamento” das instituições políticas do reino, em
consonância com D. Manuel, rei de Portugal, que a isto o estimulou. Assim, a
justiça do Estado passou a se guiar pelas normas portuguesas, a partir da
embaixada de Simão da Silva, portador do Regimento de 1512, e os antigos chefes
de linhagem das províncias passaram a intitular-se de condes, marqueses,
duques. Trata-se de matéria riquíssima que não temos condições de desenvolver
aqui, mas vale o registro de que, sob a inspiração política e institucional
portuguesa, o Estado congolês foi perdendo as características tradicionais de
confederação ou chefatura pluritribal para assumir, ainda que no plano das
instituições e da etiqueta política, aspectos da monarquia ocidental, centralizando-se
mais nitidamente - traço que sobreviveria ao reinado de Afonso I, perdurando
até o século XVIII, não obstante as dilacerantes crises políticas que o reino
atravessou no século XVII.
Por
outro lado, Mvemba Nzinga recebeu grande ajuda dos portugueses para incrementar
o comércio de cobre extraído em regiões ao norte do Congo que, trazido para a
capital , tornou-se um meio valioso com o qual o rei podia adquirir mercadorias
européias. Essas importações e o incremento no comércio, ao aumentar a riqueza
do rei, permitiram assegurar a lealdade de nobres importantes, construindo a
base de um longo e memorável reinado. Também o comércio de escravos com os portugueses,
em fase inicial de implantação, tornou-se monopólio real com redes de comércio
que chegavam a São Tomé, o centro de todo tráfico da África ocidental, e até
mesmo ao Benin[2].
De 1510 adiante, a vida social do reino
do Kongo gravitava entre dois pólos: o tráfico de escravos e o cristianismo,
como afirma Georges Balandier:
“Desde meados do século
XVI, no Kongo, a expansão cristã, o tráfico de escravos, o confronto de
diferenças de civilizações, de certo modo antagónicas se inscreviam na mesma
estrutura. E que aparece como esbouço ou caricatura daquela que a colonização
moderna engendrará três séculos mais tarde”.[3]
Quando
o comércio de pessoas fugiu do controle do rei, com mercadores desrespeitando
as rotas estabelecidas e o monopólio real, Mvemba Nzinga escreveu ao rei português
reclamando que até mesmo nobres congoleses estavam sendo capturados em guerras
interprovinciais para serem vendidos como escravos. O comércio de escravos era
antigo naquela região, mas as regras tradicionais estavam sendo violadas. Não
apenas prisioneiros de guerra ou pessoas endividadas estavam sendo negociadas,
mas as rotas tradicionais, controladas pelos chefes locais, estavam sendo ignoradas
em prol de novos caminhos que burlavam o controle real. Tudo isso ameaçava o
poder real com a evasão de tributos que lhe seriam devidos pelos privilégios
tradicionais e o enriquecimento de chefes e comerciantes abalava as bases de
seu poder. Somando-se a isso, a região do Ndongo (futura Angola), começava a
atrair o interesse dos comerciantes portugueses que buscavam justamente fugir
aos monopólios existentes no Kongo, concorrendo com o tráfico de escravos
controlado pelo rei congolês e pelos comerciantes autorizados pelo rei lusitano.
Mvemba
Nzinga enfureceu-se tanto, que baniu todo o comércio e ditou uma
ordem de expulsão de todos os brancos, com excepção de professores e
missionários. Porém, alguns meses mais tarde, acabou por revogar esta sua
ordem.
Vejamos
o extrato de uma carta dirigida a D. João III, sobre o não cumprimento das
instruções régias por parte dos oficiais portugueses (6 de Junho de 1526). Os
comentários interpretativos que surgem no decurso da carta é da autoria do
historiador António Luís Ferronha:
“Senhor. – Em vinte e seis de Julho desta presente era
nos chegou recado como um navio do trato de Vossa Alteza era chegado ao nosso
porto do Soio, com a qual vinda nos prouve muito, por haver muitos dias que
navio não veio a este nosso reino, para por ele sabermos novas de Vossa Alteza,
o que muitas vezes desejamos saber como é razão que seja e isso mesmo pela
grande e estreita necessidade em que estávamos de vinho e farinha para o santo
sacramento e disto nos não espantamos tanto porque muitas vezes temos a mesma
necessidade. E isto senhor, causa o muito esquecimento que os oficiais de Vossa
Alteza de nós têm, e de nos mandarem visitar com as sobreditas coisas como
temos sabido que lhe por Vossa Alteza é mandado e dado em regimento por ser
tanto serviço de Deus e seu como é.
E estando com este contentamento por termos com que os
seus ofícios divinos celebrasse o que as nossas gentes é muito necessário para
sua confirmação e salvação nos veio outra nova de grande tristeza e nojo para
nós em nos certificarem como a rainha D. Leonor nossa Irmã, era falecida da
presente vida o que tanto sentimos e a tanto nojo nos obrigou quando Nosso
Senhor é aquele que o sabe. E não fora pequena mezinha para nossa desconsolação
e sentimento o sabermos por Vossa Alteza ante que por outra nenhuma pessoa de
seu Reino por ser o estilo dos Reis cristãos e assim passou do Rei vosso pai,
que santa glória haja, Vossa Alteza é certo que fomos feitura sua assim como o
somos de Vossa Alteza e temos muita antiga e justa razão chorar e sentir seus
falecimentos como por verdadeiro princípio e fundamento do bem que nos Deus
Nosso Senhor tem mostrado. Em o crermos de que suas altezas, que santa glória
hajam, tem tanto em crescimento ante Deus quanto foi o bem e o fruto e que em
seu louvor neste Reino deixam fruto, o qual esperamos em sua misericórdia que
para sempre seja firme, onde nunca haverá esquecimento para suas almas de
contínuo se encomendarem a Deus, nos sacrifícios e bens que se nestes Reinos fizerem,
o qual esquecimento não podemos a Vossa Alteza, o não haver assim por bem e seu
serviço pois que o é, mas aos muitos grandes carregos e cuidados que sobre
Vossa Alteza carregam com tais falecimentos e os outros que cada dia lhe
acorrem estes seriam a causa de lhe não lembrarem nossas coisas. Senhor: Vossa
Alteza saberá como nosso reino se vai se perder em tanta maneira que nos convém
provermos a isso com o remédio necessário, o que causa a muita soltura que
vossos feitores e oficiais dão aos homens e mercadores se virem a este Reino
assentar com lojas, mercadorias e coisas muito por nós defesas, as quais se
espalham por nossos reinos e senhorios em tanta abundância que muitos vassalos,
que tínhamos à nossa obediência se levantam dela, por terem as coisas em mais
abastança que nós, com as quais os antes tínhamos contentes e sujeitos e só
nossa vassalagem e jurisdição que é um grande dano assim para o serviço de Deus
como para a segurança e sossego de nossos Reinos e estado [proliferação de
comerciantes, denuncia o “rei”, tendo em atenção que destrói o desenvolvimento
económico do “reino” e cria insatisfação popular].
E não havemos este dano por tamanho como é que os ditos
mercadores levam cada dia nossos naturais filhos da terra e filhos dos nossos fidalgos
e vassalos e nossos parentes [e continua a sua denúncia, afirmando que os
comerciantes de escravos já levam familiares seus, e o que queria era
sacerdotes e não comerciantes] porque o ladrões e homens de má consciência os
furtam com desejo de haver assim as coisas e mercadorias desse reino que são
desejosos, os furtam e lhos trazem a vender; em tanta maneira Senhor é esta
corrupção e devassidade que nossa terra de despovoa toda o que Vossa Alteza não
deve haver por bem nem seu serviço. E por isso evitarmos não temos necessidade
destes Reinos mais que de padres e algumas poucas pessoas para ensinarem nas
escolas [sacerdotes para ensinarem] nem menos de nenhumas mercadorias [também
denuncia a importação de mercadorias que ao fazerem concorrência com as do
Congo criam uma situação conflituosa com o povo] somente vinho e farinha para o
santo sacramento, porque pedimos a Vossa Alteza nos queira ajudar a favorecer
neste caso em mandar a seus feitores que não mandem cá mercadores nem
mercadorias, porque nossa vontade é que nestes Reinos não haja trato de
escravos nem saída para eles; pelos respeitos sobreditos, outra vez pedimos a
Vossa Alteza que o haja assim por bem, pois doutra maneira não podemos dar
remédio a tão manifesto dano Nosso Senhor por sua clemência tenha sempre Vossa
Alteza em sua guarda e lhe deixe sempre fazer as coisas de seu santo sacrifício
a qual muitas vezes as mãos beijo. Desta nossa cidade do Congo escrita aos seis
dias de Julho. D João Teixeira o fez de mil quinhentos vinte e seis anos.
El-Rei D. Afonso.”
No verso da carta lê-se o seguinte: “ao muito poderoso e excelente príncipe D. João Rei nosso Irmão” [Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Corpo Cronológico, Part I, Maç.34, Doc. 94].[4]
De
todo modo, quando os portugueses chegaram à foz do Zaire, o Kongo, assim como
outros reinos da região, estava em processo de franca expansão, como os
registros de guerras frequentes atestam. A escravização das populações conquistadas
permitia aos reis ampliar sua riqueza pessoal assim como fortalecer exércitos e
o corpo administrativo composto por dependentes directos, além de aumentar o
volume de tributos recebidos dos territórios ocupados. Assim, a expansão
permitia o acúmulo de riqueza e um reforço da centralização política.
Quando
os portugueses chegaram àquela parte da África, portanto, não só encontraram
uma grande população cativa, como as condições necessárias para sustentar um
amplo mercado de escravos, no qual havia espaço para os estrangeiros recém-chegados.
No caso congolês, o próprio processo de centralização e fortalecimento das
cidades frente às aldeias estava baseado na crescente existência de escravos,
concentrados principalmente em mbanza Kongo, cujo trabalho era apropriado pelos
membros das linhagens nobres que, assim, incrementavam sua riqueza, seu poder,
seus sinais de status. Não só no Congo, mas em vários estados da África
centro-ocidental os escravos eram resultado das guerras de expansão, sendo fundamentais
na centralização e reforço das lealdades[5].
Mvemba
Nzinga reinou nesse período, e apesar dos problemas que seu reinado enfrentou,
expandiu as fronteiras do reino, fortaleceu a centralização do poder real, desenvolveu
a capital, disseminou o cristianismo e a educação formal, valorizando sobremodo
a leitura e a escrita. Não seria exagero ver em seu reinado, sobretudo do ponto
de vista religioso e político-institucional, o processo que Serge Gruzinski chamou
de ocidentalização, estudando o México na mesma época[6].
Lembrado até hoje como o mais poderoso rei da história do Kongo, Mvemba Nzinga (D. Afonso I), esse defensor implacável
da fé cristã, assemelha-se em muitos aspectos ao ideal de rei missionário e
cruzado, rei que combateu os infiéis com a ajuda de forças divinas, ampliou e consolidou
as fronteiras da cristandade. As bases do catolicismo congolês fincaram raízes
profundas no seu reinado, que se prolongou até quase meados do século XVI. Catolicismo
que, não obstante, foi incapaz de remover por completo as tradições religiosas
locais, do que resultou um complexo religioso original, híbrido, a um só tempo
católico e bantu.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GRUZINSKI, Serge. La colonisation de l’imaginaire - l’ occidentalisation dans le Méxique. Paris, Gallimard, 1988.
MACGAFFEY, Wyatt. “Dialogues of the deaf: europeans on the Atlantic coast of Africa”. In: Stuart Schwartz, (org). Implicit Understandings. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.259; Kenny Mann. Kongo, Ndongo, West Central Africa. New Jersey, Dillon Press, 1996, pp.51-53.
THORNTON, John. “The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750”, Journal of African History, N.25, 1984, p.155.
THORNTON, John. Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Chicago, The University of Chicago Press, p.108-109.
[1]
THORNTON, John. “The Development of an
African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750”, Journal of
African History, N.25, 1984, p.155.
[2] MACGAFFEY, Wyatt.
“Dialogues of the deaf: europeans on the
Atlantic coast of Africa”. In: Stuart Schwartz, (org). Implicit
Understandings. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.259; Kenny
Mann. Kongo, Ndongo, West Central Africa. New Jersey, Dillon Press,
1996, pp.51-53.
[3] BALANDIER, Georges, La Quotidianne au Royaume de Kongo
du XVI au XVIII siècles, Hachette, Paris, 1965, p. 49.
[4]
FERRONHA, António Luís Alves. As
cartas do rei do Congo D. Afonso, Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 151.
[5]
THORNTON, John. Africa and Africans in
the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Chicago, The University of
Chicago Press, p.108-109.
[6]
GRUZINSKI, Serge. La colonisation de
l’imaginaire - l’ occidentalisation dans le Méxique. Paris, Gallimard,
1988.
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